Despenalização do consumo de drogas: O seu a seu dono

Por iniciativa do Jornal Público, vários dirigentes políticos foram convidados a responder a perguntas dos leitores formuladas através da internet. Na edição de 23 de Setembro, o Público deu conta de algumas das respostas dadas. A uma pergunta sobre a despenalização das drogas, Francisco Louçã afirmou que “graças ao BE, já se conseguiu o fim da criminalização do consumo”. Não é exacto.
Em rigor, o processo legislativo que deu origem à despenalização do consumo de drogas processou-se do modo seguinte:
Em 25 de Fevereiro de 2000, o Bloco de Esquerda apresentou o Projecto de Lei n.º 113/VIII sobre a separação de mercados de estupefacientes e combate à toxicodependência, visando operar uma separação de mercados entre as chamadas drogas “leves” e as chamadas drogas “duras”, legalizando as primeiras e enquadrando no sistema público de saúde a distribuição de substâncias como a heroína ou a cocaína aos cidadãos que delas necessitassem para suprir o estado de abstinência, sob acompanhamento médico e mantendo o controlo estatal do comércio, importação e distribuição dessas substâncias.[1]

Em 2 de Março de 2000, o PCP apresentou duas iniciativas legislativas sobre o regime legal das drogas. O Projecto de Lei n.º 120/VIII, de despenalização do consumo de drogas e o Projecto de Lei n.º 119/VIII estabelecendo o regime de mera ordenação social aplicável ao consumo de drogas. Segundo estes projectos, o mero consume de drogas deixaria de ser crime, passando a ser-lhe aplicável um regime de dissuasão que excluía a aplicação de sanções penais.[2]

Em 11 de Maio de 2000, alguns Deputados pertencentes à JSD apresentaram o Projecto de Lei n.º 210/VIII sobre “drogas e combate às toxicodependências”, no qual defendiam a despenalização do consumo das chamadas “drogas leves” e a administração terapêutica, mediante prescrição médica, de outras drogas de que o doente, encontrando-se numa situação grave de dependência, organicamente necessitasse.[3]

Finalmente, em 1 de Junho de 2000, o Governo PS apresentou a Proposta de Lei n.º 31/VIII que definia o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica, regime que passava basicamente pela descriminalização do consumo de drogas, que passava a ser considerado como um ilícito de mera ordenação social.[4]
O debate na generalidade sobre estas iniciativas foi de facto desencadeado pelo BE, que usou o seu direito à marcação da ordem do dia para o debate do seu projecto de lei, permitindo que todos os outros projectos apresentados fossem agendados por arrastamento. O debate foi marcado para 21 de Junho de 2000.
Os projectos de lei baixaram à Comissão sem terem sido votados na generalidade, para uma nova apreciação, da qual resultou um texto de substituição que reuniu apoio maioritário. No dia 6 de Julho realizaram-se as votações. Na generalidade, os projectos de lei do BE e da JSD foram rejeitados, tendo sido aprovados os projectos do Governo e do PCP, com a abstenção do BE.[5] O texto de substituição aprovado na Comissão, teve os votos favoráveis do PS, do PCP, do BE e do PEV e os votos contra do PSD e do CDS-PP.
Estes foram os factos. O BE teve o mérito, que não lhe retiro, de ter desencadeado o debate que deu origem à descriminalização do consumo de drogas e votou a favor do texto final aprovado. Porém, a lei que foi aprovada e que descriminalizou o consumo de drogas, com as positivas consequências que hoje são reconhecidas, não resultou do projecto do BE, que foi rejeitado, mas da fusão entre os textos então propostos pelo PCP e pelo Governo que, esses sim, foram aprovados.
A descriminalização do consumo de drogas foi apoiada pelo BE, em votação final, mas não aconteceu “graças ao BE”, como foi afirmado. Aconteceu, graças à convergência entre o PS e o PCP. O seu a seu dono.



[1] Publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 23, de 3 de Março de 2000, pp. 479-488.
[2] Publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 24, de 15 de Março de 2000, pp. 521-524.
[3] Publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 41, de 18 de Maio de 2000, pp. 1506-1508.
[4] Publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-A, n.º 47, de 8 de Junho de 2000, pp. 1594-1599.
[5] O projecto do BE teve os votos a favor do BE, do PEV e de 14 Deputados do PS; teve os votos contra do PSD, do CDS-PP e de 3 Deputados do PS; teve as abstenções do PS, do PCP e de 6 Deputados do PSD. O projecto dos Deputados da JSD teve apenas 14 votos favoráveis de Deputados do PSD, as abstenções do BE e de 16 Deputados do PS, e os votos contrários dos restantes. A proposta do Governo e os projectos do PCP tiveram os votos favoráveis do PS, do PCP e do PEV, os votos contra do PSD e do CDS-PP e as abstenções do BE.