Em declarações ao Público de hoje, no contexto de referências às relações com o governo de Guterres, Francisco Louçã afirma, a dado passo, que «com Guterres conseguimos atacar a violência doméstica, fizemos uma coisa extraordinária que foi a despenalização dos toxicodependentes».
Não é a primeira vez que, nesta matéria (e também noutras), Francisco Louçã empola o protagonismo do BE, em regra silenciando o do PCP.
Ora, sobre este tema, já há mais de dois anos, o deputado do PCP, António Filipe, pôs aqui os pontos nos is nos seguintes termos:
Despenalização
do consumo de drogas: O seu a seu dono
Por iniciativa
do Jornal Público, vários dirigentes políticos foram convidados a responder a
perguntas dos leitores formuladas através da internet. Na edição de 23 de
Setembro, o Público deu conta de algumas das respostas dadas. A uma pergunta
sobre a despenalização das drogas, Francisco Louçã afirmou que “graças ao BE, já
se conseguiu o fim da criminalização do consumo”. Não é
exacto.
Em rigor, o
processo legislativo que deu origem à despenalização do consumo de drogas
processou-se do modo seguinte:
Em 25 de
Fevereiro de 2000, o Bloco de Esquerda apresentou o Projecto de Lei n.º 113/VIII
sobre a separação de mercados de estupefacientes e combate à toxicodependência,
visando operar uma separação de mercados entre as chamadas drogas “leves” e as
chamadas drogas “duras”, legalizando as primeiras e enquadrando no sistema
público de saúde a distribuição de substâncias como a heroína ou a cocaína aos
cidadãos que delas necessitassem para suprir o estado de abstinência, sob
acompanhamento médico e mantendo o controlo estatal do comércio, importação e
distribuição dessas substâncias.[1]
Em 2 de Março
de 2000, o PCP apresentou duas iniciativas legislativas sobre o regime legal das
drogas. O Projecto de Lei n.º 120/VIII, de despenalização do consumo de drogas e
o Projecto de Lei n.º 119/VIII estabelecendo o regime de mera ordenação social
aplicável ao consumo de drogas. Segundo estes projectos, o mero consume de
drogas deixaria de ser crime, passando a ser-lhe aplicável um regime de
dissuasão que excluía a aplicação de sanções penais.[2]
Em 11 de Maio
de 2000, alguns Deputados pertencentes à JSD apresentaram o Projecto de Lei n.º
210/VIII sobre “drogas e combate às toxicodependências”, no qual defendiam a
despenalização do consumo das chamadas “drogas leves” e a administração
terapêutica, mediante prescrição médica, de outras drogas de que o doente,
encontrando-se numa situação grave de dependência, organicamente necessitasse.[3]
Finalmente, em
1 de Junho de 2000, o Governo PS apresentou a Proposta de Lei n.º 31/VIII que
definia o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias
psicotrópicas bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem
tais substâncias sem prescrição médica, regime que passava basicamente pela
descriminalização do consumo de drogas, que passava a ser considerado como um
ilícito de mera ordenação social.[4]
O debate na
generalidade sobre estas iniciativas foi de facto desencadeado pelo BE, que usou
o seu direito à marcação da ordem do dia para o debate do seu projecto de lei,
permitindo que todos os outros projectos apresentados fossem agendados por
arrastamento. O debate foi marcado para 21 de Junho de
2000.
Os projectos
de lei baixaram à Comissão sem terem sido votados na generalidade, para uma nova
apreciação, da qual resultou um texto de substituição que reuniu apoio
maioritário. No dia 6 de Julho realizaram-se as votações. Na generalidade, os projectos de lei do BE
e da JSD foram rejeitados, tendo sido aprovados os projectos do Governo e do
PCP, com a abstenção do BE.[5]
O texto de substituição aprovado na Comissão, teve os votos favoráveis do PS, do
PCP, do BE e do PEV e os votos contra do PSD e do CDS-PP.
Estes foram os
factos. O BE teve o mérito, que não lhe retiro, de ter desencadeado o debate que
deu origem à descriminalização do consumo de drogas e votou a favor do texto
final aprovado. Porém, a lei que foi aprovada e que descriminalizou o consumo de
drogas, com as positivas consequências que hoje são reconhecidas, não resultou
do projecto do BE, que foi rejeitado, mas da fusão entre os textos então
propostos pelo PCP e pelo Governo que, esses sim, foram
aprovados.
A
descriminalização do consumo de drogas foi apoiada pelo BE, em votação final,
mas não aconteceu “graças ao BE”, como foi afirmado. Aconteceu, graças à
convergência entre o PS e o PCP. O seu a seu dono.
[1] Publicado no Diário da Assembleia
da República, II Série-A, n.º 23, de 3 de Março de 2000, pp.
479-488.
[2] Publicado no Diário da Assembleia
da República, II Série-A, n.º 24, de 15 de Março de 2000, pp.
521-524.
[3] Publicado no Diário da Assembleia
da República, II Série-A, n.º 41, de 18 de Maio de 2000, pp.
1506-1508.
[4] Publicado no Diário da Assembleia da República, II
Série-A, n.º 47, de 8 de Junho de 2000, pp.
1594-1599.
[5] O projecto do BE teve os votos a
favor do BE, do PEV e de 14 Deputados do PS; teve os votos contra do PSD, do
CDS-PP e de 3 Deputados do PS; teve as abstenções do PS, do PCP e de 6 Deputados
do PSD. O projecto dos Deputados da JSD teve apenas 14 votos favoráveis de
Deputados do PSD, as abstenções do BE e de 16 Deputados do PS, e os votos
contrários dos restantes. A proposta do Governo e os projectos do PCP tiveram os
votos favoráveis do PS, do PCP e do PEV, os votos contra do PSD e do CDS-PP e as
abstenções do BE.
publicado em quinta-feira, 23 de Setembro de 2010 23:14